Ct 007 - Com certeza

Ele andava por caminhos difíceis em sua sofrida vida. Estava num daqueles períodos em que as escolhas eram, por si só, desafios. Tarefa complicada é encontrar opções que satisfaçam uma alma insatisfeita. 

Hoje, seu sentimento ainda era o de ontem, de quase sempre destas semanas. Tal como pão amanhecido, esquecido sobre a mesa sem nenhum cuidado. Mais um dia que começava às quatro da manhã, no final de uma enevoada noite.

O sereno úmido da praia vinha com a maresia que lhe é peculiar. Um dia típico do mês de junho, como nos outros anos. A ida à pesca poderia ser melhor. Essa maresia lhe umedece até mesmo os sentidos; dormira pouco, perturbado com o resfriado de ontem. Talvez fosse em parte pelos seus excessos.

Bebera conhaque e cerveja à vontade na noite anterior. Acordou com um misto de mal estar e cansaço. O corpo cansado e a mente ainda dormindo o deixavam apenas com o corpo presente naquele caminhão – o pensamento ia longe.

Integrava-se aos demais, no interior do baú do caminhão. Em meio ao sereno do amanhecer, ele somava-se à massa uniforme. Os olhares sofridos e as individualidades, juntadas a redes, caixas e remos. As marmitas, quase sempre pouco sortidas, misturadas a casacos e toucas rotas. Um todo triste se faz, adicionado e multiplicado pelos desafios diários e problemas particulares.

Há tempos proibe-se o transporte de pessoas em carroceria de caminhão, mas por estes cantos esquecidos, é assim que os pescadores seguem ao trabalho. Ao pesqueiro, distante do centro em muitos quilômetros, vai-se por buracos em solavancos dentro do baú de um caminhão. Por eles as vidas seguem, sacudindo-se em suas alegrias, tristezas e sonhos.

Dentro do caminhão trepidante, ele pensava até quando iria viver. Ponderava se deveria mudar algo em sua vida ou manter tudo como estava, numa silenciosa espera pela morte. A sabia como certa mais do que a maioria das pessoas. Entre um pensamento e outro, chegaria ao pesqueiro, mesmo que as idéias quisessem levá-lo para longe.

Lançavam a rede na foz do Rio Ribeira de Iguape, aproveitando a entrada de peixes vindos do mar. Com cerca de oito quilômetros quadrados, nela formam-se diversos baixios e canais. Esses são de pequena velocidade em vazão, pois percorrem longos trechos em planícies, até chegar ao mar. O rio cria bacias espraiadas - com longo espelho d'água de pouca profundidade - favorecendo a entrada da água do mar; com isso, o Ribeira torna-se salobre numa grande extensão. Algumas espécies buscam essas águas para sua reprodução, ao tempo que os pescadores servem-se delas para as capturas. Onde a vida procura sua perpetuação, há o encontro entre os algozes e as presas.

Eles utilizavam-se de uma canoa baixa, dessas feitas de tronco único, a qual entrava água por entre diminutas fendas em seu casco. Em aproximado, a cada meia hora precisavam esgotá-la; ele seguia remando na popa, impondo força em conjunto com um parceiro conhecido há muito. Punha poucos esforços ao remo na popa, preocupando-se em servir-se dele também como leme; seu companheiro à frente empenhava-se mais, dando velocidade. Um conjunto harmonioso; entre ambos havia a rede deitada sobre uma caixa plástica sobre o fundo da canoa. Motor e leme, dois pescadores. À frente, as águas da Barra do Ribeira. Ao leste – nessa época do ano um pouco mais a noroeste – o sol lançava as primeiras claras do dia. A vermelhidão refletida nas nuvens anunciava um dia frio.

Posicionaram-se e começaram a jogar a rede. Um de cada lado; rede descendo e a maré adentrando ao Rio. José observou algumas gaivotas. Ele estava próximo a um baixio; no início da maré cheia, bandos de gaivotas aproveitam para retirar seus sustentos. Elas põem os pés na lama, junto ao mangue; aguardam silenciosamente pela captura de seus alimentos. Com precisão e destreza, retiram sua pesca sem excessos, na medida exata de sua subsistência e pequenos ganhos; peixes miúdos são devolvidos ao dadivoso Ribeira.

Era apenas mais um dia; e ele não presumia que houvesse nada de especial naquele. Porém, em momentos críticos observamos acontecimentos comuns com riqueza de detalhes que passariam imperceptíveis em circunstâncias normais. Idéias soltas, conceitos abstratos até demais para José; enfim, ele refletia e dividia suas opiniões com o amigo. ― Ô camarada, vê só aquelas gaivotas! Não estão preocupadas... Vem, tomam o “café da manhã”; mais tarde dá fome e voltam para “almoçar”. Deu fome, vêm e comem... Livres e soltas, vivem à vontade.

O amigo de José estava tranqüilo, mas não desatento à conversa. Respondeu sem muito pensar, instintivamente: 
― E nem precisam vir de caminhão, como nós, sacudindo tal como sacos de farinha em cima de lombo de burro chucro!

Voltando à cidade ao fim do dia, foi direto ao boteco que freqüentava. Após o dono do bar servir-lhe um conhaque, expressou a alegria em revê-lo. 
― Toma teu quebra-gelo, ô pau-d'água!

Uma amizade antiga, dessas cultivadas dia após dia, permitia-lhes conversas até mesmo sem muito respeito aparente. 
― Ô pilantra, hoje vou contar... Você sempre me marca a mais, aproveitando que fico passado! Até parece uma raposa, no escuro me pega os ovos!

Segue-se o silêncio, tornando aquelas provocações amistosas impróprias quanto à paz do lugar. Desmereciam-se mutuamente, mas a amizade estava além disso. Não sobrariam mágoas, pois em seguida soavam gargalhadas. Quase diariamente viam-se e a intimidade sobejava nessas brincadeiras.
Nestes bares de lugarejos, o atendente não prima muito pela higiene... 

Entre uma passada com mãos sujas no avental e outra sabe-se-lá-onde, cumprimenta José: 
― Que é que o companheiro tem? Anda esquisito, mais quieto que de costume!

Olhando-o surpreso e desconfiado, José até pensou em desabafar com ele. Eram amigos de longa data. Hesitou e respondeu afinal: 
― Nada não, vai vê é falta de mais um conhaque!

Prendia o problema para si; não queria que soubessem da sentença proferida pelo médico. Não compartilhava com ninguém; achava injusto o problema, mas não queria a condescendência, caridade ou pena de ninguém. Queria apenas morrer com dignidade.

José mantinha segredo, principalmente quanto ao resultado do exame recente. Sua rotina estava como sempre, de casa para o serviço e desse, muitas vezes, ia diretamente para o bar. Lá encontrava parceiros para suas diversões e alívio para os dissabores. Buscava pequenas coisas, dessas que nos atraem a atenção e nos afastam da procura de soluções para grandes problemas.

Há duas semanas, ele foi a um médico e constatou uma doença terminal. Tumor cerebral em estágio avançado. Em sua mente rondavam, como nuvens negras, as implacáveis palavras do médico:

― Temos aqui o resultado do teu exame; lamento, mas terá de seis meses a dois anos de vida. Um tratamento com quimioterapia pode até diminuir esse período, face à agressividade dos medicamentos e o estágio avançado do tumor.

Lágrimas brotaram-lhe nos olhos. Era homem duro, forjado por quarenta anos de serviço rude – iniciado aos dez. Seu choro era algo quase incomum. Pensava na esposa, nos filhos, nos pais... Deixaria a todos. Chorava agora pelo inevitável.
 
Desesperado por uma causa, sem considerar o que ou quem, afinal, poderia lhe ajudar, buscava pôr um fio condutor nessa história, de como lhe surgiu a doença; independente das explicações médicas, ele julgava que havia alguma condição, tal como um resfriado ou coisa parecida. A pré-disposição de cunho genético, como lhe dissera o médico, soava estranha.

Assimilou, pela declaração do médico, nossa condição fundamental como mortais: a certeza da morte. Nascemos com um bilhete de viagem com data e hora de embarque, sem previsão do término da viagem; não sabemos o quanto durará a viagem ou o percurso.

Entre esses pensamentos e lembranças, pediu mais um conhaque. Levantou o copo para um brinde. Sorriu e dividiu a sua reflexão com o amigo. 
― Pode até ser irônico, mas a única certeza da vida é a morte!

E continuamos, todos nós, vivendo à espera da morte.