Cr 022 - Livros e Ritmos

Ao caminhar entre os pinheiros que enfeitam a praia do Meu Recanto, empurro pela mão a bicicleta; a areia afofada naquele trecho me impossibilita de pedalar. Encosto a bicicleta junto a um pinheiro e me sento num tronco que, possivelmente, fora ali deitado nas areias à guisa de banco. Trazendo no bagageiro da bicicleta um livro, estive à procura de um local para leitura e julgo que esses pinheiros, além de servir para amenizar a intensidade do forte vento vindo do mar, proporcionam um belo local para se ler ao final da tarde. Enquanto leio, ao fundo ouço o marulhar suave das ondas vindo da praia e, de mais longe, chega aos meus ouvidos um ritmo de “Axé” das músicas que acompanham o verão nas praias de Ilha Comprida.

 Do outro lado deste oceano que está em minha frente vieram muitos povos. Os europeus que chegaram, “para fazer a América”, desde o século XVI, trouxeram em sua cultura a linguagem escrita. Por outro lado, creio que para a linguagem escrita não havia nada similar entre os povos originários da Africa que vieram para o Brasil por força da escravidão. Parece-me que a História daqueles povos, bem como os seus valores e meios de vida, eram passados de geração a geração através de fábulas e cânticos, em ritos e ritmos muito próprios. A alegria das pessoas, despertadas pela sonoridade da batucada, vistas hoje nessas e noutras praias, não nos remete aos hábitos dos ancestrais europeus. Sinto-me inclinado a acreditar que devemos aos africanos essa alegria toda que vejo ao largo dos quiosques, onde as pessoas balançam em ritmos que lembram as danças dos povos africanos.

 Lembro-me de um livro que meu filho abriu em leitura, há tempos. História bem contada, com ótima ambientação... fugiu-me o título e o nome do autor. Porém, o que me veio à mente é que até hoje ele não terminou aquela leitura e, claro, pode ser que ele não o tenha aberto novamente. Ora... As estatísticas dizem que o brasileiro pouco lê; e ele é apenas um cidadão comum, um brasileiro como outro qualquer, preferindo ao ritmo em si do que ao conceito do ritmo. A leitura que ele faz do cotidiano, penso eu, surge do ritmo, melodia e movimento, não importando qual é o significado dessa musicalidade toda, em termos literários ou culturais. Porém, e apesar de que, o ritmo do qual ele gosta (e que o faz dançar), vem de batidas de sintetizadores e é chamado de “funk”.

Nos artefatos históricos das culturas havidas aqui, antes da invasão do europeu e da migração forçada dos africanos, encontramos tambores e outros instrumentos voltados ao ritmo e melodia, o que demonstra a forte musicalidade desses povos “brasilianos”. Observando-se a ancestralidade do meu menino, em parte provinda dos “brasilianos” e dos caiçaras, é possível que sua inserção em meio aos ritmos seja por isso facilitada. Assusta-me, por fim, saber que grande parte dos conhecimentos atuais somente são transmitidos pela forma escrita e verificar, dia após dia, que aumenta o desinteresse pela leitura entre os jovens.

 A batucada do “Ilê-ayê”, vinda de um quiosque da praia, juntava-se à leitura que eu fazia de O Povo Brasileiro (Darcy Ribeiro). Aproveitei para anotar num rascunho esses parágrafos anteriores, os quais reproduzo tais como os elaborei. Assim, acrescento para concluir, após vários meses das anotações originais, poucas palavras mais, tal como segue.

 Em seguida o Sol findava nessas paragens a sua trajetória cotidiana. Majestosamente, ele nos trouxe calor para o dia todo e, naquele fim de tarde, anunciava-se uma chuva com forte tempestade; algumas gotas já caiam e era hora de sair de onde eu estava em busca de um abrigo. A chuva que logo chegaria prometia ser forte, a julgar pela escuridão vinda das nuvens. O local mais próximo que havia era de onde surgia aquele frenético ritmo de axé. Sem muitas reservas, avancei até lá e fiquei perto das pessoas que dançavam animadamente, enquanto procurava me esconder da chuva. A alegria por eles sentida era contagiante e intensa; a despeito da chuva, continuaram a dançar.

 Os meus pés e pernas, involuntariamente, procuravam se mexer como se eles tivessem vida própria. Não tive sucesso em acompanhar aqueles lindos movimentos que me enchiam os olhos e alegravam o meu coração. Faltou-me, talvez, ter um ancestral africano, brasiliano ou caiçara para herdar a facilidade em ler o ritmo.

Julio Silva