Ct 006 - Dezesseis anos


De ontem para hoje eu sonhei com a minha futura profissão. Deitei logo depois do jantar e não quis assistir à novela das oito...”
Ela interrompeu a escrita do seu diário, para responder a uma pergunta que a mãe lhe repetia; estava tão absorta na escrita que não a escutou da primeira vez. A pergunta repetia-se:
 — Eliana! Não quer assistir à novela comigo?
 — Não, mãe! Não quero, já vou me deitar... Tô com sono e amanhã cedo a primeira aula é às sete horas... Boa noite!
Após responder, fechou o diário e o guardou sob o travesseiro. Nisso, uma sirene de viatura – “É a policia!”, pensou ela – soou alto na rua. Os reflexos azuis e avermelhados do giroflex lançavam-se sobre o teto do seu quarto, cujas cores fizeram um arrepio percorrer o seu corpo. Ao escutar a reclamação da vizinha, uma sensação de mal estar lhe estremeceu o estômago. Inclinou-se sobre o crucifixo que levava junto ao seu pescoço e beijou-o; uma triste sombra avançou sobre o seu coração. Palavras lhe chegaram da rua:
— Mataram mais um! Olha lá! A viatura parou no fim da rua.
Do apartamento ao lado, pegado por parede ao de Eliana, a visão da vizinha avançava até o fim da rua do condomínio da Cohab em que moravam.
A mãe dela entrou e abraçou a filha. Eliana, sonolenta, retribuiu o abraço e beijou a mãe no rosto.
 — Durma com Deus, minha filha!
Eliana fechou a porta, logo após a saída da mãe de seu quarto, apanhou a caneta e retomou a escrita.
Toda vez que a viatura vai para o fim da rua, é por que algo de muito ruim aconteceu; a galera do Doni é da pesada. Vai ver que brigaram novamente e nessas brigas saem até mortes. Não posso falar do Doni sem lembrar-me do meu querido Greg. Ele estava envolvido com tráfico e fui firme com ele; pedi para que escolhesse entre eu e o tráfico. Porém, seduzido pela grana fácil, me deixou... Não fiquei triste por que isso mostrou-me o seu caráter! Mas, eu ainda o amo... Ah! Já estava esquecendo do meu sonho. Foi muito...
Tocou o interfone e, do seu quarto, pôde escutar sua mãe respondendo à alguém para subir ao apartamento onde moravam. Pouco depois, uma batida seca na porta de seu quarto, seguida de mais duas. Sua mãe entrou em seu quarto com os olhos traduzindo-se em pânico.
 — Que foi? Mãe? Que aconteceu? – pergunta ela, ao observar a mãe.
 — Foi uma coisa terrível!
O pânico da fisionomia da mãe refletia-se em Eliana.
 — Com quem? Com o pai?
Uma lágrima desceu dos olhos cor de mel de Eliana, a espera de uma curta e triste resposta.
 — Não... Foi o Greg. O Doni o matou... Dois tiros à queima roupa, no meio da cabeça.
Eliana jogou-se sobre a cama e chorou, aos soluços, lembrando da última conversa que teve com Greg.
Quando se viram pela última vez, ele estava com a sua bermuda larga de bolsos fundos e, notava-se, alguns pequenos embrulhos os enchia. Ela sabia o que significava aqueles pequenos volumes em seus bolsos. Ele a abraçava, ao final da tarde, numa pequena área próxima ao hall do condomínio. Um lugar simples, pessoas simples. Ela lembrou-se de cada palavra daquela conversa...
 — Greg, te amo muito. Te amo, mesmo, com toda a minha vida... Tenho só dezesseis anos e namoramos a três. Você foi, até agora, o meu único namorado, o meu amor. Mas... por que tá traficando? Eu sei que nossa vida é dura, nossos pais ganham pouco e que em quase tudo somos excluídos por falta de grana... Mas, a parada é mais dura do lado do tráfico. Osnossos amigos que entram por esse caminho somente acabaram por encurtar a vida... Pare com isso, eu te quero, e vivo!
Greg sorriu e disse-lhe, com certo rancor.
— Ae, mina... Tô ligado que tu não tá na minha! Não tá não! Depois saio dessa e a gente vai se dar bem. Na boa... Um dinheiro pra gente começar a vida... Pô! Terminei a bosta do Curso de Ferramenteiro – ae, é ensino profissionalizante, pô! – e nem assim consigo emprego! Só tenho essa solução...
— Meu, pára! Cê tá nessa há mais de três meses! Tô fora... Você tem que escolher! Ou eu ou o tráfico!
— Meu, sem idéia! Não dá pra parar agora! A grana tá entrando é agora, sai fora.
Acabaram por trocar outras palavras, de tons mais ásperos, das quais ela não se recordava com muita exatidão; muitas expressões que lhe fugiram ao longo do tempo e lhe restou, em sua memória, duas frases concatenadas simbolizando o raciocínio de cada um.
Naquela noite, após um choro descontrolado, Eliana voltou-se para o diário e complementou a frase que havia começado antes da triste notícia.
“Foi impressionante sonhar com o Greg. No sonho eu era psicóloga e procurava conversar para que não procurasse por caminhos que acabariam por encurtar a vida dele; eu nunca teria adivinhado que ele iria morrer hoje...”
Dezesseis anos depois, a página do diário era revista pela autora; uma lágrima escorreu e manchou o envelhecido papel, juntando-se à marca de outra lágrima derramada na ocasião do falecimento de Greg. Eliana arrancou a página do diário e a colocou junto ao seu diploma de Psicologia.
Julio Silva

Conto vencedor da etapa regional Vale do Ribeira do Mapa Cultural Paulista 2011-2012.